Nossas angústias

O tormento da lucidez
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Só existe um sentimento humano legítimo e verdadeiro: a angústia! Todo o resto é passageiro, todo o resto é irrelevante. As dores, as felicidades, as paixões... Nenhuma delas realmente importa. A angústia sim é fundamental, é ela que nos dá existência efetivamente humana, é a nossa companheira de toda uma vida; é ela quem está presente em cada pensamento e em cada ato e momento, sempre nos lembrando da falta de sentido do mundo e da irrelevância da nossa vida. Ela nos transforma naquilo que somos e marca o abismo entre o que queremos e o que o mundo nos permite. A angústia é parida pela responsabilidade que cada indivíduo tem diante das suas escolhas. O peso da liberdade e a responsabilidade pelo seu destino provocam no indivíduo lúcido os maiores tormentos. No seu desespero resignado, nosso amigo Kierkegaard lembrou que o indivíduo mais satisfeito é aquele que não tem consciência de sua situação; na sua filosofia estava escondido o óbvio: o desespero é bom, é o abandono de todas as certezas, é a vertigem da liberdade! A verdade é que toda e qualquer tentativa de se resolver os problemas existenciais são inúteis; mas diante deles há dois caminhos possíveis: se apegar ao conforto de qualquer explicação sobrenatural, ou aceitar que a existência humana é necessariamente sem sentido e ridícula, medíocre porém fantástica, e que a nossa capacidade de zombar dela é que nos faz capazes de suportar o seu peso. Ou nosso reino não é deste mundo ou nosso mundo não é deste reino!

Ódio, cicatrizes da alma

Ódio, cicatrizes da alma
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Eu vou para o inferno, eu sei. Serei condenado por não ser capaz de um perdão sincero. Minha sinceridade me condena, por isso não posso nem ser salvo e nem me dizer cristão, como, aliás, fazem os hipócritas. Não posso rezar palavras vazias como fazem aqueles que repetem a oração, não posso pedir para ‘Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’. Não, não perdoamos porra nenhuma! Quando Jesus quis ensinar os homens a rezar, talvez não tenha imaginado que para Deus essa frase pudesse ser dura de ouvir; sabe o Senhor que essas palavras, quase que invariavelmente, exalam o fétido odor da hipocrisia que domina as almas daqueles que por tradição ou falta de opção se dizem cristãos. Para a maioria dos homens, desejar que Deus dê o mesmo tipo de perdão a que alcança nossos corações é pedir por condenação. Sou um desses que até são capazes de acreditar em algum tipo de arrependimento, mas ainda assim não tenho a mínima capacidade de perdoar sinceramente, seja por inspiração demoníaca ou pura falta da divina graça, minha crença é a de que as feridas da alma não se curam e que mesmo quando já não causam as mesmas dores deixam as cicatrizes e que essas são apenas disfarces superficiais para talvez esconder as pequenas hemorragias internas que nos acompanharam até nossa última hora. Continue lendo



Roubar livros, cultivar o amor

Roubar livros, cultivar o amor
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Estão todos ali, perfilados, imóveis, esperando um gesto, um toque, um pouco de atenção. Concentrados em seus campos, cada um deles com seu número, lugar determinado e marcas de carimbo, cada um com sua ficha através das quais eles podem ser encontrados, ordenados e rotulados. Nos seus corpos uma história, talvez uma vida. São centenas, milhares, quase empilhados, todos em silêncio sepulcral mas vivos e prontos para nos mostrar um mundo. Um ao lado do outro, estão ali desejando um toque, uma escolha, um chamado, como as moças que no salão de baile esperavam um convite para uma dança. Eles te olham como quem, cheio de más intenções, pudessem dizer: me leve para sua casa, me tenha em suas mãos, me guarde em sua mente, me deixe te dar prazer, me deixe fazer parte da sua vida. São livros, presos em bibliotecas como crianças depositadas em orfanatos, não desejam muito, querem apenas um pouco de atenção, um olhar, uma mão estendida, desejam ser percebidos, querem que cada um de nós, humanos, possa reconhecer que eles têm vida em suas páginas e que elas podem de algum modo nos ser úteis. Em cada palavra e cada verbo há uma pulsação, em cada frase de cada capítulo um amontoado de sentidos e sentimentos. Não há crueldade mais vil que a do canalha que não se comove com a solidão de um livro abandonado, esquecido em estantes frias de corredores vazio ou da indiferença em relação às angustias daqueles que não aceitam ser somente um número, dos que não desejam ter um preço, dos que não querem ser mercadoria. Continue lendo



Fantasias obsessivas...

...realidades perversas e arte visceral
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Saiu na Times uma lista dos 200 artistas mais importantes do século XX, é uma bobagem. Quase todas as listas desse tipo são bobagens; essa não é diferente e nela estão os de sempre, numerados em ordem decrescente. Não entendo patavina de pintura, mas ainda assim repito o que diz o Óbvio: nada de Picasso, nada de Cezánne, Monet ou Duchamp, o grande artista do século passado é o Chico Toucinho. Ele mesmo, aquele irlandês que os gringos ainda não desaprenderam a chamar de Francis Bacon. A genialidade do sujeito é de doer nas retinas, Bacon é a mais grandiosa expressão das dores, das paixões, das misérias e das agruras humanas. Não é arte para meninas sensíveis, Bacon se mutila e se expõe esquartejado em telas distorcidas e repletas de sofrimentos, anomalias e deformações. É assustador, é visceral, é apaixonante! Violência, erotismo, masoquismo e pedofilia se misturam em fantasias obsessivas regadas com lágrimas, sangue e esperma; suas imagens desoladoras são expressões das maiores perversões mentais e dos piores pesadelos do homem fragilizado que cresceu sendo chicoteado pelo pai e maltratado pela babá que o trancava no armário. Chico, que nasceu há exatos cem anos, costumava dizer que gostaria que suas pinturas dessem a impressão de que um ser humano passou por dentro delas, como uma lesma, deixando o rastro de sua presença e resquícios da memória de eventos passados, assim como a lesma deixa rastros de sua baba. Certamente ele conseguiu... E como conseguiu!



 

O assassinato do Padre Marcelo

O assassinato do Padre Marcelo
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Era um sujeito de ideias e hábitos estranhos. No meio das suas tralhas ele guardava um caderninho verde onde costumava listar nomes de pessoas famosas que gostaria de ver mortas e esquartejadas em praça pública. Cada figura candidata a cadáver recebia uma nota que ia de 7 a 9; não me pergunte por que – já disse que o sujeito era estranho, sei que quanto maior a nota maior era o desejo de ver aquela pessoa inerte no caixão. Na lista bem organizada havia todo tipo de gente de jogadores de futebol e políticos a líderes religiosos, nas suas devidas categorias e com suas notas em destaque se encontravam Pelé e Neymar, Malafaia e Bispa Sonia, Maluf e George Bush, sim era uma lista internacional. Dizem que quando alguém da lista ia a óbito havia uma comemoração discreta, na morte da Hebe foram apenas três taças de champanhe. Na lista, alguns amados outros odiados pelo povo. Até mês passado o Padre Marcelo perdia feio para todos esses, sua era nota 7,5; acreditava ele que o pior castigo, as orelhas de abano, já seria uma maldição divina pior que a morte. Como disse, foi assim até semana passada, foi quando o padre cantor conseguiu inaugurar sua nova igreja, um templo para dezenas de milhares de fiéis justamente no bairro onde o sujeito morava. O padre levaria o inferno àquele lugar, continue lendo



Verdades e groselhas

Verdades, governos e groselhas
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Juro que é verdade! Eu tinha uns treze anos e sempre brincava com ele; um menino normal, não fosse o caso de chorar groselha. É sério! Dessas mesmas groselhas que estão à venda nos supermercados em garrafas de um litro; tinha, aliás, a mesma cor, textura e sabor que a groselha vitaminada Milani. Era uma festa! A molecada jogava bola na rua, brincava de esconde-esconde e sempre que necessário parava pra dar umas bofetadas na cabeça do Samuca, só pra ele chorar o nosso refresco. Todos se juntavam em volta dele e o seu choro foi fazendo fama; onde ia ele levava uns tabefes. Quanto mais apanhava mais groselha. Tivesse festa na escola e logo de manhã formavam-se duas filas: uma pra tomar o refresco, outra pra espancar o Samuca; se tinha quermesse, era o milagre da multiplicação dos sopapos. Ele foi crescendo e desenvolveu a capacidade de produzir groselha sem precisar apanhar, a coisa virou involuntária; mas ainda assim todos queriam espancá-lo, pelo prazer manter a tradição.
Ainda me lembro o dia em que o presidente lançou o programa Sede Zero para distribuir groselha para a população pobre e quando um senador do seu partido fez o Sede Mínima, para que toda a população pudesse receber um litro diário do refresco. O moleque ficou famoso, foi para Brasília, apareceu na TV, recebeu medalha, virou capa de revista... Tudo era muito legal! O problema é que, como todos sabem, groselha é muito enjoativa e depois de alguns meses ninguém mais no planeta aguentava nem sentir seu cheiro. Era o fim. O menino não conseguia diminuir a produção, que de tão grande já estava contaminando os rios e ameaçando o mar. Pensando no bem do planeta, o governo não tinha outra opção, teve que matar o Samuca. Ainda bem!

Sobre predestinação

Sinais da desgraça satânica
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Sou quase um calvinista! Quase! Pelo menos acredito que Calvino estava certo num ponto crucial, o da predestinação. Deus criou os homens e os predestinou a serem salvos ou condenados. Não importa as nossas intenções ou as nossas obras, faça o que fizer o destino já está traçado. O erro do teólogo foi não perceber a mais óbvia das evidências que diferencia os condenados daqueles que ganharam a piedade do criador: o ronco! Nada entendo de religiosidade e nada sei sobre os herdeiros dos reinos dos céus, mesmo porque não devo estar incluído no grupinho do Senhor; o que me resta então é especular sobre os sinais visíveis daqueles que queimarão no mármore. Não tenho dúvida, pelo menos uma evidência eu descobri: o ronco é um dos sinais do corpo possuído pelo Belzebu. Quem ronca já está no inferno, pois não é possível que esse problema não seja a mais óbvia evidência de como o mal domina o corpo humano. O ronco impede o amor e destrói as relações humanas, afasta os justos e atormenta as almas. Soube disso outro dia, tive que viajar à noite, num ônibus, com uma dessas pobres almas, um sujeito que roncava mais que porco ferido nos olhos. Quatro horas com o estridente sonido do inferno nos meus ouvidos. Só quem já passou por isso sabe o que estou dizendo. Sei que a luz dos céus me incitava a cortar aquela garganta amaldiçoada, e tivesse eu uma navalha abreviaria a desgraça satânica daquele condenado. Deus deu a ideia, mas não deu a navalha; estou preocupado, talvez seja um outro sinal!



 

Filosofia do medo

O medo da morte e a mente perturbada
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Thomas Hobbes é um filósofo do medo. Em vida foi um covarde, mas não foi bobo. Conhecia bem a natureza humana, sabia que o egoísmo e o desejo de poder de cada um era uma ameaça a todos os outros e que, por conta deles, os conflitos e as guerras eram inevitáveis. Sabia que, assim como ele, os outros homens são medrosos e covardes porque temem a morte e se apegam à vida mesmo quando ela é solitária, miserável, sórdida e embrutecida. Junte o risco eminente de conflito, a violência ameaçadora e o medo e se tem os ingredientes básicos para a formulação da defesa de um Estado totalitário. O medo perturba a mente; em qualquer época, em qualquer lugar, o medo da morte violenta leva o homem a aceitar qualquer situação que possa lhe garantir a vida. Para garantir sua sobrevivência o homem aceita se submeter a governos autoritários, aceita abrir mão de seus direitos, de sua liberdade, de sua felicidade... Mesmo o mais medíocre estadista sabe o poder do medo, sabe que o medo é o soberano que iguala os homens e também sabe que os regimes políticos precisam de terríveis inimigos; sejam eles reais ou imaginários.


Jornalismo bobagem, show dos milhões

Jornalismo bobagem, show dos milhões
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Organize uma festa para um grupo de quinze ou vinte pessoas, as mais próximas, os melhores amigos. Marque o dia, a hora e o local e mande os convites. É bem provável que alguns não apareçam, o motivo não importa, alguém pode estar doente, indisposto, pode ter sofrido um trauma ou estar viajando, talvez tenha que trabalhar ou tenha algum compromisso inadiável. Isso sempre acontece, menos nas festas com cobertura da imprensa, nessas nunca falta ninguém. Eles dizem que no réveillon da Paulista haverá dois milhões de pessoas e, touché, no dia seguinte a notícia será: dois milhões de pessoas festejam a chegada do ano na Paulista. Mais de dois milhões estarão em Copacabana, extraordinário, faça chuva ou faça Sol não vai faltar ninguém! Na Parada Gay ou na Marcha para Jesus a cada ano surgem 500 mil novas almas, em breve teremos 300 bilhões de pessoas. Qualquer idiota, que não seja jornalista sabe que é impossível colocar sequer meio milhão de pessoas na avenida, qualquer moleque que conheça um mínimo de estatística pode provar isso, mas certos jornalistas parecem ser idiotas de outra espécie. Jornalistas costumam ser analfabetos quando se trata de números, mas o problema não é esse, antes fosse. Notícias como essas existem porque há interesses por trás e mesmo as bestas que não ganham nada reproduzem os números, ás vezes por cumplicidade, às vezes por ignorância, não tem desculpa, quem informa deve conhecer o que informa, deve checar a informação, deve buscar a verdade... se não fazem isso nas questões mais simples imagine naquelas em que é necessário correr riscos ou usar o cérebro.


Meus dois talentos

Meus dois talentos
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Não sou dessas pessoas que assistem diversas vezes a um mesmo filme, na maioria das vezes tenho dificuldade para me concentrar o suficiente para chegar ao final de um filme médio. Foi por motivos profissionais que assisti Preciosa: uma história de esperança por mais de meia dúzia de vezes e por conta disso tenho na cabeça algumas de suas cenas; lembro a voz da professora perguntando a suas alunas: 'o que você faz bem? Todo mundo é bom em alguma coisa'. Sim, desde que crianças tentamos ser bons em algumas coisas e, por vezes, desejamos descobrir que somos ou poderemos ser bons em algo. Tenho dois talentos: titubeio e procrastino, sou bom nisso, bom titubeante e procrastinador. Sei que em geral as pessoas não vêem isso como qualidade, o que, em minha defesa, tenho que contestar: titubeia aquele que carrega mais dúvidas que certeza e, como é de conhecimento geral, isso se não é virtude ao menos trouxe menos prejuízos para a história da humanidade do que do que homens com certezas. A certeza sim é um mal, Hitler e Pol Pot tinham as suas, todo fanático tem suas certezas e aqueles que querem impor suas verdades a outros jamais questionam, duvidam ou se sentem indecisos; esses também não costumam adiar seus atos, não deixam pra depois. Sim, eu procrastino! Não apenas como conseqüência, óbvia, do titubear constante mas também como busca por auto-desenvolvimento ou complacência: demorar, deixar pra depois ou adiar é também uma busca por aperfeiçoamento: se acredito na minha evolução tenho necessariamente que acreditar que na próxima semana terei condições de fazer coisas melhores do que aquelas que faria hoje, por isso não deixo para amanhã o que posso fazer depois de amanhã. Essas qualidades extraordinárias que me colocam entre os melhores nessas artes me fizeram abandonar esse blog, com esse texto tentarei voltar a escrever, seja por teimosia ou pura falta de caráter!


Bigodes e poderes

O bigode e o poder secreto
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Precisamos defender o Sarney, pelo bem da democracia é preciso defender o bigode do ex-presidente! Pelo que se comenta, o tio do bigode é um velho salafrário, e é bom que seja assim! Ele tem todo o direito de querer levar vantagens pessoais na vida pública; se consegue enganar os imbecis e se o sistema político é condescendente , palmas pra ele. A corrupção não é uma questão de moral pessoal, não é questão de índole, é uma questão pública. Não se deve acreditar nos seres humanos e nem se deve dar poderes ilimitados a eles, quando se dá deve-se arcar com as conseqüências. Você leitor eleitor seria provavelmente muito pior que o excelentíssimo senador se pudesse dispor de seus poderes; que, aliás, são poucos. Imagine um mundo em que todos os seus atos fossem secretos, pense como seria bom fazer o que bem entender sem ter que prestar contas a ninguém, sem ter que pagar pelos seus atos, sem ter que enxergar nos olhos dos outros qualquer sinal de desaprovação. Ato secreto para tudo e contra todos, não seria ótimo? Quem seria a sua primeira vítima? Qual seria o seu maior crime? Passar anos vivendo como anjo, como deus ou demônio; todos os dias cometendo erros, deslizes, crimes e pecados secretos, sem que ninguém saiba, sem que ninguém julgue. Seria o melhor dos mundos! Aquele que pode ser é!


Dinheiro sagrado

Deus e o dinheiro na terra do sol
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Não conheço nenhum negócio que dê tanto lucro fácil quando a abertura de templos religiosos e a exploração da fé. Não é preciso sair de casa a salvação vem até você, basta entrar nos sites das novas igrejas evangélicas ou assistir algum culto televisivo para perceber que ali o dinheiro tomou o lugar de Deus. O diabo deve gostar disso, eu também! Eu gosto desses pastores que não têm pudores em pedir dinheiro, mais dinheiro e muito dinheiro, desses que prometem riqueza em troca de ofertas para a igreja. É bom ver pastores abandonando o espírito santo e abraçando o espírito do capitalismo! Pastores que sabem fazer auto-promoção, que sabem vender esperanças de bens materiais e que transformam suas imagens em mercadoria e objeto de devoção. Adoro o Silas Malavéia, o R.R., o casal Bispo e Bispa, o Macedão... Vejo tudo, quero votar nos seus candidatos e quero lhes dar a riqueza que eu não tenho. Adoro igrejas empresas, movidas pelo dinheiro santo do Senhor, também gosto dos fiéis que gritam aos céus que querem ficar ricos e dos shoppings com mercadorias cristãs. Sou ateu, mas acho confortante saber que sem esforços eu também posso ser um campeão da fé! Que para isso basta ser um gideão que contribui com míseros mil reais. Regozijo em saber que a relação entre o fiel e a igreja é como uma suruba: que tudo o que você der você receberá multiplicado. Alegro-me em saber que com apenas 900 reais eu posso contribuir voluntariamente com a Campanha Vitória Financeira e ainda ganhar a bíblia de estudo Batalha espiritual e vitória financeira. É confortante saber que eu posso ter um cartão de crédito com a cara do meu pastor e que na Igreja da Graça nada é de graça.


Empresa Universal

Pequenas igrejas, grandes negócios
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É preciso defender a Igreja Universal do Reino de Zeus. Sim camaradas, para o bem da humanidade é preciso defendê-la. A Universal, como todos sabem, nada tem de igreja; é sim uma grande empresa capitalista que trabalha com mercadorias relacionadas à fé e no capitalismo qualquer mercadoria que não seja ilegal pode ser vendida ou comprada; os governos não devem intervir nisso. Se o mundo estiver repleto de idiotas, melhor: muito mais lucrativos serão os negócios, muito mais ricos serão os capitalistas. Se alguém consegue vender uma cueca furada, suja e abençoada por mil reais, sorte dele, e se alguém paga por ela o problema é deste outro; se em nome de Deus alguém põe à venda um sonho de prosperidade financeira, compra quem quer, quem tem a mesma mentalidade capitalista suja e quem busca a mesma riqueza a qualquer custo. Ao fim e ao cabo cada um deve ter seus motivos e, como diria o Tio Patinhas, o mundo é dos mais espertos. A bíblia dá sustento para todas as canalhices, se a Universal é uma máfia e se tornou um império por conta de ações criminosas, que isso seja apurado e provado e que os responsáveis sejam punidos, mas que não se condene ninguém por vender esperanças e ilusões e nem mesmo por vender a salvação das almas; compra quem quer e a estupidez é um direito e um problema de cada um. Não devemos ter piedade dos idiotas! Que Deus tenha!


Serei condenado, os jumentos não!
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Da Universal: ‘Sim, a oferta representa o Senhor Jesus Cristo. Daí a razão de ser tão santa e sagrada quanto a própria Palavra de Deus. Aqueles que vêem as doações das ofertas com maus olhos, ou seja, do ponto de vista meramente mercadológico, também têm dificuldades para compreender a razão da vinda do Filho de Deus ao mundo’. Da bíblia: ‘aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte.’ [ Apocalipse 21.8]. Nada sobre os estúpidos! Eles podem ter esperanças!


Crime e castigo

A mais cruel das doenças
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A paixão é a mais cruel das doenças, ela sufoca o amor, mutila, decepa e destrói vidas. Ela domina a razão, enceguesse os espíritos e, como um buraco negro, arrebata tudo à sua volta. Das loucuras temporárias que acomete os homens é das mais perigosas, pois é capaz de colocar em risco a vida daquele que sofre sob o seu domínio e o alvo a quem o enfermo escolhe como motivo para a perversa obsessão. Nos casos mais graves a paixão toma de tal forma o corpo e a mente, ou o espírito se quiserem, que o feliz infeliz quer ter domínio sobre o outro quando já não tem domínio sobre si. Nesses casos ousaria dizer que ninguém pode ser condenado por cometer um crime quando o cometeu movido por uma paixão! Mas pode a paixão ser motivo de um crime? E quem comete o crime é ainda vítima? Digo que sim, e falo de paixão no seu sentido mais usual, de amor desenfreado e desmedido, falo do sentimento patológico pelo outro que se confunde com o amor, e afirmo que não se pode e não se deve simplesmente condenar alguém que comete um crime quando movido por uma paixão, pois não se faz justiça quando se condena alguém que não possui controle sobre suas ações. Semanas atrás soube que houve na Faculdade de Direito da USP a simulação de um júri, o tema era também esse: pode a paixão absolver um criminoso? No final das contas a conclusão a que se chegou parece ser semelhante àquelas aqui exposta: o ser humano não é mais do que um brinquedo nas mãos da paixão e existem casos em que o criminoso, movido por paixão avassaladora, merece, pode e deve ser absolvido.


Obs.: podemos imputar às paixões todos os males, mas como lembrou Diderot, mas não podemos esquecer que elas são também a fonte de todos os prazeres.


Lugares e mulheres

Ainda sobre o Rio
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"Não há mulher feia, há mulher pobre! Não há lugar feio, há lugar pobre". Os antropólogos têm razão, beleza é uma construção cultural, mas os economistas deveriam completar a frase, dizendo que beleza é também questão econômica! Riqueza e beleza andam juntas, vivemos no triste mundo no qual só é feio o que não tem dinheiro. Exageros à parte, a frase possui dois sentidos: no primeiro, a beleza é um conceito construído, portanto aqueles que dominam ideologicamente a sociedade também determinam os padrões socialmente difundidos daquilo que é feio ou belo. Não vou falar desse, que exige uma certa heterodoxia sócio-econômica, mas daquele sentido simples que a manicure da esquina conhece. Bairro rico é bairro bonito, bairro pobre é bairro feio; mulher rica se enfeita, mulher pobre se enfeia. As construções arquitetônicas e o paisagismo funcionam na cidade como a plástica, o silicone e os tratamentos estéticos funcionam no corpo feminino. Mas a carcaça enfeitada quase sempre serve pra esconder o conteúdo sem conteúdo, e assim como a moçoila bonita nem sempre é a mais bacana o lugar bonito nem sempre é o mais interessante; quase sempre falta vida, falta emoção, falta fascínio... O Rio de Janeiro maquiado para turistas tenta ser um jardim, mas é uma beleza sem graça, sem charme, sem atrativos; ninguém se apaixona por estátuas de cera em museus. O Rio decadente, do subúrbio, dos botecos, dos morros, da favela e da viela, este sim possui uma vida, talvez feia, mas vida viva.


Cidade maravilhosa

Natureza, homens e cidade
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O Rio é uma cidade maravilhosa, mas sua beleza não é tão evidente e simples quanto aquela que se quer vender aos turistas. O fascínio do Rio não está em Ipanema ou no Leblon; nem nas pedras do Corcovado, da Urca, das calçadas de Copacabana ou das mãos dos traficantes. A beleza fascinante está na sua absoluta decadência, na sobreposição dos tempos vividos e perdidos e na tragédia da beleza de uma alegria sem sentido; a magia da cidade está nos becos estreitos e nos paralelepípedos do centro velho, onde ainda se pode ver as sombras de Machado de Assis, do seu Nelson e do Sobrenatural de Almeida, está na feiúra dos prédios de arquitetura soviética e nos casarões e palacetes mal-cuidados que evidenciam a irrelevância da beleza perante a vida cotidiana. Em cada canto, cada rosto e cada paisagem espelham o mais completo caos urbano e a tristeza da vida sem sentido, um resultado maluco de uma guerra constante entre natureza, homens e cidade; de batalhas em que todos saem perdendo mas onde ninguém é derrotado em definitivo. Mas suas ruas e becos são expressões fortes que nos trazem lembranças de uma vida que gente não viveu e são as marcas da cidade mágica que guarda mais de um século de um descaso que se inicia com o fim da monarquia e se que intensifica no desprezo cotidiano de cada habitante. No Rio, o belo é o inesperado, é o conflito, é a tristeza, é a angústia, é o que poderia ter sido e não foi.



Palhaçada cruel

Do pó vieste, ao pó voltarás...
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Banho de Sangue, Palhaço mata quinze na Vila Vintém. Essa foi a manchete, escrita em letras garrafais, do jornal Expresso. Óbvio, eu comprei o meu; não sei quantos outros fizeram o mesmo. Dentro do jornal a notícia era outra: havia apenas um boato de chacina, possivelmente um acerto de contas entre traficantes, muitas especulações e nenhum corpo encontrado. O Expresso é vendido por 50 centavos em todas as bancas do Rio, é um exemplo fácil da cultura da violência que domina a cidade. De modo geral, a capital fluminense está longe de ser o local mais perigoso do país contudo a imagem que se faz ali e dali é impressionante. No mesmo dia o concorrente Meia Hora trazia o nome de oito chefões do pó; isso apenas na capa, cercando a foto da bunda de uma Big Brother! Traficantes são figuras quase mitológicas, cheios de poderes; seus crimes reais e imaginados estão na cabeça de todos e a violência é o maior sinônimo do poder e da impotência. Com isso vende-se jornais, armam-se diversos esquadrões de guardas particulares e milícias armadas por policiais corruptos, diversas estruturas de poder paralelo e roubalheira ganham fortunas... Muitos perdem, mas sempre há quem ganhe; e quem ganha quer sempre ganhar mais, a qualquer custo...


Erros e fraquezas

A verdade sempre nos condena
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Eu confesso senhores, eu confesso! Assumo que já tentei ser politicamente correto, que já tentei ser o mais honesto e justo entre os homens. Com esta confissão não estou dizendo que cometi um crime, mas que cometi um erro. Meu erro foi acreditar que poderia ser guiado pela minha razão e que a minha razão me faria uma pessoa melhor. A tentativa de ser, ou, no meu auto-engano, de tentar mostrar ser, um sujeito bom e correto é um equívoco que cometemos quando sucumbimos diante das cobranças da sociedade, do moralismo religioso ou diante do sentimento de culpa que vem de ambos. É uma estupidez, é uma debilidade! Na verdade nós não temos muitas opções, ou somos imbecis ou somos ordinários; ou vivemos uma mentira ou vivemos uma verdade que nos condena. Não há outras possibilidades, somos crápulas assumidos ou somos hipócritas! Quando soube disso, desisti de buscar a bondade e a santidade, desisti de tentar ser herói e busquei me libertar para praticar meus pequenos crimes e para cometer meus enormes pecados. Diante das nossas fraquezas, a única possibilidade que a vida nos permite é a de assumir ou não nossos erros. O pouco de ética que nossas paixões nos permite depende do reconhecimento de nossas limitações. Não há salvação, mas é nesse reconhecimento que o homem pode manter o equilíbrio fino entre o aceitável e o inaceitável, encontrar o que pode e o que deve e a tranquilidade de consciência que o permite dormir tranquilo. Não serei amargo, serei doce. Minha doçura será espalhar sal nas feridas que não são as minhas.


Cartão vermelho

Futebol e o lance da condenação perpétua
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Só há algo de realmente importante na vida; o futebol. Tudo o mais é apenas acessório, é desperdício de tempo é entretenimento e distrações que unem os homens para aquilo que realmente importa, o jogo da vida. Só no futebol existe o amor verdadeiro, só no futebol existe o crime sem perdão e a condenação eterna. Há pouco mais de 60 anos começaria o maior julgamento da história desse país. Lembro-me como se fosse ontem, o Brasil ganhava de um a zero do Uruguai na final da Copa do Mundo. Bastava um empate, tínhamos todos a certeza de que seríamos campeões. Os mais de duzentos mil corações que lotavam o Maracanã não imaginaram em seus piores pesadelos que os inimigos fariam dois gols e levariam a taça para Montevidéu. Não houve outra derrota mais dolorida para o povo brasileiro, não houve um peso mais pesado a ser suportado por um único homem. O dois a um não foi uma derrota ou uma tragédia, foi um crime, só os crimes possuem vítima e culpado; e os anos mostrariam que a vítima e o culpado seria o mesmo homem: o goleiro Barbosa. O arqueiro negro da seleção sofreria por cinqüenta anos, até a sua morte, a dor da perseguição, do insulto e do desprezo de todo um país que o culpou pelo crime de ter tomado um gol. Até o dia em que morreu, de tristeza quem sabe, Barbosa suportou como ninguém, todo o gosto amargo de um julgamento e de uma condenação que se repetia todos os dias de uma vida. Sugiro à sua filha adotiva, que o acompanhou na reclusão e depressão nos seus últimos anos de angústia, que escreva em seu túmulo: futebol, alegria do povo!



Convicção, responsabilidade

O preço do sonho do outro
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O professor se divide entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade; Max Weber se esqueceu de dizer isso. Temos idéias e visões de mundo que constantemente entram em conflito com as nossas atribuições. Após dar aulas de teoria política para duas turmas de Administração Pública na Unesp, chego ao fim do semestre com cerca de um quarto de alunos reprovados; não são alunos reprovados por incapacidade de qualquer tipo mas por cederem a um pecado capital: a preguiça. Reprovar alguém é algo triste e desagradável e que por vezes se choca com muitas das minhas idéias sobre educação. Ocorre que a avaliação de um aluno não se baseia apenas em critérios pedagógicos ou simplesmente acadêmicos; não sei se a questão pode ser tratada em termos de ética, mas certamente esta influi nas decisões. A Unesp é uma universidade pública, mantida com verba que chega através do governo mas que vem dos impostos da maioria da população. Crianças pobres que compram pães doces nas padarias ajudam a sustentá-la; mulheres que sequer podem sonhar em ver um dos seus filhos numa universidade e idosos que gastam suas parcas moedas em arroz e remédio sustentam a educação de jovens, quase sempre de classe média, e certamente não aprovariam se soubessem que eles deveriam estudar e não estudam. Eu também não. É triste, mas uma grande parcela dos estudantes não lê o mínimo, sequer tenta fazer qualquer coisa, se abstém de pensar e apresenta trabalhos copiados como se isso fosse normal... A Unesp é uma da mais importantes universidades do país e o curso de Administração Pública formará vários quadros para a burocracia do país, após usufruírem das benesses do Estado serão pessoas que podem ter empregos melhores que a média da população e poderão ter responsabilidades sobre diversas questões referentes à vida de milhares de pessoas, inclusive sobre a da criança que compra doce, a da mulher impossibilitada de sonhar e a do aposentado que tem que escolher entre o alimento e o remédio.


 

Restos mortais

We are the world, we are the children...
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Passei cinco semestres da minha vida estudando antropologia. Não aprendi nada! Minha única vaga lembrança está na frase de Levi-Strauss de que há alimentos bons para comer e outros bons para pensar. E se ainda lembro disso é por conta do meu amigo Kleber, esse sim o maior antropólogo que conheci; na sua majestosa inteligência ele dizia que há pessoas boas para comer e outras boas para fazer pensar. Michael Jackson não devia ser bom para comer, no entanto ninguém melhor que ele para nos fazer pensar. Admito que nunca gostei das músicas ou da dança do sujeito e tampouco sei dizer se ele tinha algum talento ou não, mas também admito que ninguém no mundo representou tão bem o papel de astro pop. O maluco era de certa forma uma imagem refletida do absurdo do mundo contemporâneo e, como tal, um reflexo de cada um de nós. Michael era absurdo porque tinha que ser um não humano, uma mentira, uma imagem, um produto no corpo de gente, na carne humana sem desejos e sem impulsos. Por conta disso, depois da morte, não pode haver corpo porque o corpo era o produto, e este não pode morrer. O conflito entre o homem que se negava a ser homem e a imagem construída de ídolo massacrava o primeiro e rendia estilo ao segundo. A sua morte é o melhor que podia ter ocorrido, todos saem ganhando, ganham os fãs, ganham os empresários, ganha a mídia, ganha o homem-produto. Michael Jackson, no pouco de humano que lhe restava, tentava negar o mundo que o construiu e o destruiu porque o conflito era inevitável; assim como Elvis, ele foi sendo morto aos poucos, foi se negando aos poucos, foi se matando aos poucos... Os vermes, que também nada entendem de antropologia, não deverão ter dúvidas se seu corpo será melhor para comer ou para pensar!





 

Quadrilátero do pecado

Homem e mito, à margem da lei e dos bons costumes
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Estou feliz e triste ao mesmo tempo; pelo mesmo motivo: a figura mais extraordinária da vida paulistana vai parar no cinema. Soube esta semana, estão fazendo um filme baseado na vida de Hiroito Joanides. Para quem não conhece, esse sujeito foi o rei da Boca do Lixo entre as décadas de 1950 e 1960. Para mim, há uma década ele tem sido uma espécie de companheiro invisível, um amigo constante, um sujeito que me influenciou o modo de ver o mundo. Hiroito foi cafetão, traficante, ladrão, assassino, passou anos na cadeia, saiu virou escritor, fez um livro fascinante. Também era metido a intelectual; foi leitor de Heidegger e Baudelaire. Cínico, arrogante, hipócrita e gênio usava o que aprendia nos livros de filosofia para dominar e transformar o submundo da cidade e, entre prazeres e vícios proibidos, à margem da lei e dos bons costumes, dominar o quadrilátero do pecado, na atual Cracolândia. Anos depois ele diria: 'eu e a sociedade estamos quites; o muito de mal que ela causou-me, retribuí-lhe com o muito de perturbação que lhe causei'. É uma personagem que certamente pode dar um filme extraordinário. Que bom, que pena! Por anos pensei em escrever sobre ele e sobre a Boca, se pudesse eu teria feito esse filme. Ele era uma figura que fazia parte da minha vida, talvez de mais uns dois ou três, era quase um segredo; provavelmente agora ele se tornará famoso, muita gente vai falar dele. Meu egoísmo será ferido, mas o lendário Hiroito, e quem assistir o filme, certamente vai sair ganhando. Tomara que ele crie novos discípulos!


Grandes navegações

Dois capítulos de preconceito
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Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer... Me desespero a procurar alguma forma de lhe falar...’. Roberto Carlos é o rei, mas ele só escreveu a letra dessa música porque ele não nasceu na Índia. Aqui no Brasil, e em todos os lugares do planeta, as pessoas possuem, num grau maior ou menor, alguma dificuldade para expressar certas idéias ou sentimentos. Na Índia não! Assim como o rei, às vezes nós nos expressamos mal, ficamos sem saber o que falar ou deixamos de encontrar a palavra ideal no momento certo. É uma pena, se fôssemos indianos não teríamos problemas, simplesmente falaríamos: hare baba! Hare baba serve pra tudo, expressa tudo; se você quer mandar alguém se foder, se quer mostrar admiração, se estuprou uma sardinha em lata, se queimou o dedo, se pisou na cabeça de um recém nascido... hare baba! Os indianos só sabem falar isso, o idioma deles é só isso. Deve ser por isso que na Índia todo mundo fala português. E é incrível, eles falam português melhor que a gente. É que os indianos não são felizes, eles vivem numa sociedade cheia de pobreza, desigualdade e preconceito; eles gostariam de ser como os brasileiros. Nunca gostei de novela, mas veja que supimpa, só assisti dois capítulos e já estou ficando mais culto, já aprendi tudo isso... Se depender das novelas da Globo em breve seremos todos uns antropólogos sabichões! Hare baba!



Agradecimento sincero

... e uma homenagem aos meus pimpolhos
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Todo aluno é um mau-caráter. O mau-caratismo faz parte da natureza do aluno assim como a tromba faz parte da natureza do elefante. Por isso que sou professor: nunca tive um aluno que não fosse um protótipo de canalha ou um crápula em processo de desenvolvimento. Isso é evidente; se toco no assunto é porque um desses biltres teve a pachorra de comentar que eu reclamo de tudo, que eu critico todo mundo e que não perdoo nem Marx nem Jesus. Reconheço que o sujeito não está de todo errado, assim como meu tio Nelson, eu sou um reacionário: minha reação é contra tudo o que não presta. E nesse mundo quase nada presta. Também já reclamaram que eu que falo muito do Capeta. Não peço desculpas, mas pra ser sincero falo por falar, nem o conheço. Aliás, pra não deixar de ser sincero, tenho que ressaltar que não o conheço para além dos livros de ficção e dos causos que o povo conta; óbvio. Igualmente não conheço Deus, nunca o vi pessoalmente, nunca conversamos; ainda assim mantenho com ele uma relação de respeito mútuo: eu não acredito nele e ele não acredita em mim! Se por vezes faço críticas a um ou a outro, não é nada pessoal, acho até que somos um tanto parecidos, estamos num mesmo nível e temos projetos semelhantes; por conta disso, inclusive já pensei em sentar e prosear com os dois numa mesa de boteco. Entre uma e outra dose de cachaça poderíamos conversar sobre os nossos anseios de poder e nossos desejos de dominar o mundo. Se não os convidei ainda, assumo que não foi apenas falta de tempo, foi por precaução. Não confio em nenhum dos dois, mas ouvi dizer que pelo um deles gosta de negociar e fazer pactos; vou tentar, se eu conseguir um lugarzinho especial no inferno pra colocar cada um meus alunos já vou sair no lucro.



 

Em busca de milagres

Deus e o diabo na terra no sol
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Estou desconfiado de Deus, acho que ele não é mais aquele! Onde está o todo-poderoso capaz de fazer coisas extraordinárias? Antigamente o poder de Deus ressuscitava os mortos, transformava água em vinho, destruía cidades, inundava o planeta... Mas e agora, o que ele tem produzido de interessante? Fiquei com uma pulga atrás da orelha depois de ler o jornalzinho da Igreja Internacional da Graça, aquela do R. R. Soares. A publicação traz um montão de milagres, mas tá foda ver a decadência de Deus; só tem milagrinho meia boca: é o sujeito que curou uma dor aqui outra ali, o míope que melhorou a visão, a menina que curou as perebas, a fulana que voltou a ouvir bem com o ouvido direito... Puta que o pariu! Onde estão os grandes milagres? Acho que Deus está perdendo espaço, será que ele não leu Guy Debord, será que não aprendeu nada se sociologia? Ele precisa se atualizar, nós vivemos na sociedade do espetáculo e ele fica com esses milagres bobos em igrejas evangélicas de periferia! Ele tem espaço na televisão em horário nobre e só milagrinhos insignificantes? Tanto poder pra nada? Assim não dá, não tem fé que resista! Estava pensando com meus botões que talvez ele esteja cansado, sem estímulo, sei lá... Talvez seja o caso de escolher um sucessor com idéias novas, com vontade de transformar o mundo... E nem estou falando que esse alguém deva ser necessariamente Eu! O problema é que mundo tá ficando chato, sem encanto, sem milagres supimpas, sem histórias extraordinárias; em busca de coisas mais fascinantes daqui a pouco vamos estar pedindo para o Diabo intervir por nós!

Pequenos companheiros

Os ratos e o fruto proibido
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Felizes são os ratos! Os homens são uns trastes tristes e a culpa é do Adão. Se tivesse mãe, certamente ele seria o maior filho-da-puta de todos os tempos; por causa dele e dos seus erros nós temos que trabalhar para ter o que comer. O homem foi expulso do paraíso, os ratos não; eles não pecaram e por isso são felizes, vivem do trabalho humano e riem das nossas desgraças... Riem da nossa vidinha ridícula, medíocre e sofrida. Por isso eu acredito que deve ter sido Deus quem lhes deu aquelas gargalhadas estridentes que só os tolos não conseguem ouvir. O reino dos ratos é este mundo: só na região metropolitana de São Paulo, uma das maiores aglomerações urbanas do planeta, vivem cerca de quinze milhões de pessoas e mais de 250 milhões de ratos, mais de quinze ratazanas para cada ser humano. São esses nossos pequenos companheiros que nos salvam de viver na mais completa podridão; não fossem eles, seríamos nós que viveríamos no lixo e no esgoto. Seríamos nós que teríamos de nos responsabilizar pelos dejetos da sociedade que construímos. Eles agradecem e retribuem vivendo felizes, roendo a roupa do rei de Roma, fazendo sexo mais de quinze vezes por dia e obedecendo ao criador. Aí é que está a verdade: os ratos comem de tudo menos do fruto da árvore da sabedoria.



Consciência limpa

Transformar crianças em mercadorias
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Não existem galinhas de rua, não existem vacas abandonadas; existem crianças de rua e crianças abandonadas. Não há razões para equívocos: na nossa sociedade, as galinhas e as vacas valem mais do que as crianças, elas possuem valores de troca e de uso que as crianças não têm. Enquanto os seres humanos adultos podem vender a sua força de trabalho em troca de alimento, as crianças que nada têm a oferecer e, por isso, sobrevivem de sobras e de caridades; ou então morrem de fome. Vacas e galinhas podem dar leite ou ovos, podem ser consumidas, podem dar lucro; crianças só dão prejuízo, por isso era preciso que se transformassem esses pequenos trastes em mercadorias rentáveis. Veja como o capitalismo é bom: centenas de ong’s e milhares de pessoas vivem de ajudar os coitados; vendem suas solidariedades em troca de dinheiro farto. Cobrar para dar apoio a crianças abandonadas e famintas é um negócio e tanto! Afinal, como dizia seu Nelson, não fosse o sentimento de culpa, já teríamos saído urrando pelo bosque. Quem pode pagar não tem com o que se preocupar; com alguns trocadinhos é possível comprar uma consciência limpa e um sono leve, sem a culpa de ter que lembrar que enquanto dormem as crianças continuam valendo menos que bois e porcos.



 

Quatro seguidas

Morte de ditador é sempre motivo de festa
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Dizem que dos mortos não se deve falar mal. Bobagem! Há mortes que devem ser comemoradas, há cadáveres que devem ser abandonados aos vermes e apodrecer em praça pública. Quando certos sujeitos vão para os infernos o planeta parece se tornar um lugar menos irrespirável. Hoje é dia de festa, vou comer cebolas pra comemorar. Omar Bongo se foi! Ongo Bongo quem? Para quem não sabe, tratava-se do presidente do Gabão, uma ridícula caricatura que, entre ditaduras, eleições fraudadas e muita corrupção, estava no poder desde 1967. Há alguma relevância nisso? Provavelmente não; se o Gabão some do mapa ninguém sente falta, portanto se seu presidente bate as botas ninguém se dá conta. Tirando o luto que tiram lágrimas dos meus olhos (ou seriam as cebolas?), o interessante é pensar como diabos um sujeito pode governar um povo por mais de quatro décadas. Evidente que quem está no poder não quer sair, mas porque diabos um povo se sujeita? No Gabão ninguém parece estar pensando muito nisso, quem deve suceder Omar é seu filho Ali Ben Bongo. Pelo menos ali o mundo está melhorando, o Ben sucederá Omar. Por isso hoje tem festa e eu quero ouvir Ramones: Gabão Gabba Hey! Gabão Gabba Hey!




País dos sacripantas I

A moral e as palavras impronunciáveis
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Este é o país dos sacripantas! Todo mundo se finge de beato! Somos santos de nascimento e batismo e não podemos ver, ouvir nem pensar coisas impuras. Nossa última cruzada de moralismo puritano foi contra um inofensivo livro de charges sobre futebol, o Dez na área, um na banheira e nenhum no gol. Pois é, como nossa educação pública é de reconhecida excelência, nossos defensores da moral e da família não tinham com o que se preocupar e resolveram voltar seus esforços contra um livro que sem querer foi parar no lugar errado, na hora errada; o coitado foi equivocadamente indicado para crianças da terceira série do ensino fundamental. Começou o pega pra capar! O pobre do livro, que nada tinha a ver com as preocupações dos nossos moralistas, foi recolhido pelo governo sob a grave acusação de que ele tinha cu, tinha rola e tinha merda. Tudo bem que a rôla do livro tinha um circunflexo que as rolas normais não devem ter, mas o motivo da apreensão e do seu triste destino foram outros. A preocupação não estava em saber se a rola do livro era igual à rola do Aurélio. O problema era que a publicação fazia referências à sexualidade e às drogas, coisas que anjos de nove anos não devem e não podem ter acesso. Tudo bem, talvez não seja na escola que a criança deva aprender o que é cu ou o que é puta, mas também não é preciso que se retirem os livros das escolas como se a sua presença representasse uma ameaça à sociedade. Se eles não servem para crianças de nove, quem sabe não podem ser úteis aos de treze ou catorze, idade em que a porra já não lhes sai da boca e o cu e a merda estão mais presentes que as mães e as professoras.